Marcos Jank: O bom momento da pecuária brasileira

Crise na suinocultura chinesa, abertura de novos mercados para a carne bovina, tecnologia e integração lavoura-pecuária impulsionam o crescimento do setor

Mylene Abud

Um período muito positivo para o agro brasileiro, com destaque para as exportações de carne bovina e a abertura a novos mercados. A avaliação é do professor e pesquisador sênior do Insper Agro Global, Marcos Sawaya Jank, responsável pelo mais novo centro brasileiro de estudos estratégicos e de formação de pessoas focado na dinâmica de crescimento deste setor no mundo e na inserção internacional do Brasil.

Para ele, o Hemisfério Oriental é o destino obrigatório das exportações nacionais e, mesmo com o acordo bilateral entre os EUA e a China, o Brasil ainda levará vantagem, pois é o único país da atualidade em condições de atender à demanda global. “A China é o grande fenômeno, mas não é o único. O mundo que nos interessa em termos de carne bovina inclui o Oriente Médio, cliente tradicional, e o sudeste asiático, que é uma região com muito potencial”, afirma.

E ele fala com conhecimento de causa. Engenheiro agrônomo formado pela ESALQ/USP, mestre em Política Agrícola em Montpellier, na França, Doutor em Administração pela FEA/USP, Livre-Docente e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da ESALQ/USP, passou os últimos quatro anos na Ásia, onde representou associações de exportadores agroindustriais e apoiou a expansão da BRF naquele continente. Ex-presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (UNICA) e fundador do Instituto de Estudos do Comércio e das Negociações Internacionais (ICONE), atuou como especialista em Integração e Comércio no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e integrou diversos conselhos no Brasil e no exterior. Atualmente, é conselheiro da Rumo Logística, da Comerc Energia e do International Food Policy Research Institute (IFPRI), em Washington/EUA. Liderou, ainda, projetos de organizações internacionais como Banco Mundial, FAO, PNUD e OCDE.

E adverte que, apesar de o setor agropecuário estar vivendo uma verdadeira “revolução silenciosa”, precisa melhorar a comunicação e a imagem no exterior, estreitar as relações comerciais e, internamente, aprimorar os controles sanitários. Essa e outras opiniões você confere na entrevista a seguir.

Noticiário – Após um ano com quebra de recordes, com exportações brasileiras de carne bovina no valor de US$ 7,59 bilhões e volume exportado de 1,8 milhão de toneladas, qual o panorama para o agro brasileiro em 2020?
Marcos Jank – Eu acho muito positivo. Na realidade, em 2019, no agronegócio como um todo, exportamos um pouco menos que em 2018, principalmente pela queda da soja por conta da Peste Suína Africana (PSA). Mas houve um crescimento importante em carnes, que vai continuar, e, também, em produtos como o milho e o algodão, que são basicamente frutos do fenômeno da segunda safra. Nas carnes, o grande destaque é o boi, que já ultrapassa o frango em valor exportado. E isso se deve em grande parte à China. Até 2014, estávamos exportando apenas para Hong Kong, que colocava os nossos produtos na China, mas pagando preços mais baixos. De lá para cá, houve um salto nas exportações de carnes, principalmente com a habilitação de 37 frigoríficos de carne para a China, que possibilitou esses recordes tanto em volume quanto em valor. A China é o grande fenômeno, mas não é o único. O mundo que nos interessa em termos de carne bovina inclui o Oriente Médio, cliente tradicional, e o Sudeste Asiático, que é uma região com muito potencial. Em carne bovina, o Brasil conseguiu entrar em um país que era fechado para nós, a Indonésia, que finalmente habilitou 10 plantas para a exportação brasileira, e passou a competir com dois outros fornecedores, a Austrália e a Índia. E tem grande potencial para ganhar mercado junto aos países que compõem a ASEAN (Associação Nacional do Sudeste Asiático, bloco econômico formado por dez nações). E na América do Sul, vale registrar o crescimento das compras pelo Chile. Todos esses mercados impulsionaram as exportações brasileiras. Por outro lado, os mercados tradicionais, como a Rússia e a Europa, foram caindo. Deixamos de ser “Eurásia” e passamos a nos concentrar na região mais dinâmica do mundo, formada pela China, o Oriente Médio e o Sudeste Asiático.

Noticiário – Em curto prazo, a PSA e a guerra comercial EUA x China foi bastante proveitosa para o Brasil, que, segundo alguns especialistas, apenas “surfou a onda”. Você concorda com essa opinião?
Marcos Jank – Não exatamente. A PSA derrubou o plantel de suínos da China de 54 milhões de toneladas para menos de 40 milhões de toneladas, uma queda brutal. Mas os chineses vão passar a consumir menos carne suína, porque o mercado mundial não dá conta de suprir essa demanda. Em 2020, a importação de carne suína da China será superior a quatro milhões de toneladas, enquanto o mercado mundial produz nove milhões de toneladas para abastecer todos os países. Então, a China vai suprir essa falta com três outras proteínas: as carnes de frango e peixe, oriundas basicamente da produção doméstica, e a carne bovina, que precisa ser importada, porque eles não têm como crescer internamente. Por isso, a carne bovina foi a grande beneficiada pelo processo. Cresceu em volume e em valor. Mesmo com o acordo entre os EUA e a China, o Brasil ainda levará vantagem, porque os Estados Unidos não estão preparados para atender à demanda. Acho que continuaremos a ser beneficiados pela crise de PSA pelo menos até 2022. Mas isso não quer dizer que os preços irão para as alturas como aconteceu no final do ano passado. O grosso da nossa carne bovina, cerca de 80%, ainda é consumida no mercado interno. Então, no final do ano, o produtor se animou com o aumento dos preços da carne, mas o consumidor detestou. Nós vamos ter um ano bom, a produção vai crescer, mas os preços não vão para qualquer lugar. Vai depender da capacidade de compra do consumidor brasileiro.

Noticiário – A previsão é que a China demore pelo menos dois anos para reequilibrar a produção de carne suína. Como aproveitar esse gap?
Marcos Jank
– Estudo do Rabobank mostra que a recuperação será lenta, vai se completar em 2025. Nos próximos anos, a situação exige que o Brasil tenha presença internacional e solidifique as relações com a China, principalmente nesse ambiente de guerra comercial que é muito complicado. Com relação ao acordo comercial EUA x China, a pauta exportadora americana é muito parecida com a brasileira. E se não houver competição livre, poderemos ser prejudicados. A PSA vai fazer com que a China aumente o nível de importação de carnes, que hoje é muito baixo e representa menos de 5% do consumo. Além de importar soja, eles vão passar a importar carne bovina para diminuir os riscos de desabastecimento, como está acontecendo agora. Penso que a China vai melhorar muito o controle sanitário. Criar animais dentro de granjas fechadas e controladas, reduzir brutalmente a quantidade de animais vivos nos mercados. Eles vão tecnificar a produção, que deixará de ser em fundo de quintal. E, para isso, também haverá aumento nas importações de milho e soja, o que beneficiará o Brasil.

Noticiário – Em uma recente entrevista, o sr. disse que os próximos 20 anos não serão nada fáceis para o setor. Por quê?
Marcos Jank
– Não vai ser tão fácil quanto foi nos últimos 40 anos. Isso porque, desde que aconteceu a revolução tropical brasileira, nos anos 1970, 1980, quando tivemos essa fantástica expansão da agricultura para o Centro-Oeste, a introdução de novas variedades, a segunda safra, o início da Integração Lavoura-Pecuária (ILP), a gente nunca teve que se preocupar em vender nada. O Brasil não tem nenhum acordo comercial relevante e a exportação quintuplicou desde 2000, passando de US$ 20 bilhões para US$ cerca de 100 bilhões hoje. Ou seja, basicamente as tradings vieram para cá, compraram e exportaram, porque o Brasil tem volume e preço competitivo. Então, acho que os próximos 20 anos vão ser mais complicados.

Noticiário – O que o setor agropecuário brasileiro pode aprender com a crise na China?
Marcos Jank
– Neste momento, temos esse imenso impacto de epidemias animais e humanas. A China está passando por três grandes delas (PSA, Gripe Aviária e Corona Vírus/Covid-19), e isso tem sido avassalador. Um país pode ser fechado de uma hora para outra, pode haver uma grande crise de produção. Então, acho que a primeira preocupação do Brasil deve ser com a sanidade. Precisamos intensificar brutalmente os nossos controles de entrada de pessoas, de produtos, de insumos, de tudo o que possa transmitir vírus para humanos e animais. A segunda questão é que o mundo hoje está muito mais polarizado. A visão do Donald Trump do “America First”, dos EUA acima de tudo, força a China a aceitar o acordo comercial e a reduzir o seu superávit com os Estados Unidos, e isso fatalmente impacta o Brasil. Nós somos hoje os maiores concorrentes dos EUA no mundo. A China já liberou 700 produtos americanos das suas tarifas retaliatórias, ou seja, deu aos Estados Unidos as mesmas condições que o Brasil tem de acesso. E esse acordo é totalmente bilateral, tem diversos mecanismos que soam discriminatórios. É todo feito em cima de protocolos que vão facilitar o comércio de carne bovina, de carne de aves e vários outros produtos, arroz, entre os dois países. Há quase duas dezenas de anexos agrícolas. E isso nos obriga a atuar com muito mais força junto aos nossos clientes. Precisamos ter representações permanentes na China, na ASEAN, no Oriente Médio. E fazer um trabalho de comunicação e de imagem. Temos a carne bovina mais presente no mundo em volume de exportação, mas não é a mais conhecida. Se você perguntar para as pessoas na Ásia inteira de onde vem a carne bovina importada que elas consomem, elas vão dizer dos Estados Unidos ou da Austrália. Não conhecem a carne brasileira porque a gente não vende carne gourmet, a gente vende carne indústria e carne ingrediente. O Brasil precisa trabalhar essa questão de imagem, particularmente a do boi, que é sempre atacado por todos os lados, pela mudança do clima, pelos nutricionistas etc. Isso é inacreditável! Acho que a pecuária tem que fazer um trabalho muito sólido de esclarecimentos e melhoria de imagem nos próximos anos, controlar a sanidade e garantir o bom relacionamento e o acesso a mercado dos nossos produtos, com muito mais força que no passado.

Noticiário – Em 2019, segundo dados da ABIEC, as exportações brasileiras para os países árabes somaram aproximadamente 511 mil toneladas e, em faturamento, as vendas alcançaram US$ 1,7 bilhão. Esses resultados representaram cerca de 22,5% do faturamento e 27,7% do volume total das exportações brasileiras de carne bovina. Dá para melhorar esses números?
Marcos Jank
– Acho que dá. Primeiro porque, assim como a China, o Oriente Médio não consegue produzir bovinos, então, a perspectiva é muito boa. E temos uma vantagem ali, pois a guerra comercial EUA x China e a geopolítica nos beneficiam. Os Estados Unidos estão muito atritados na região. O Irã é hoje o maior importador de milho do Brasil e temos uma relação histórica com esse país em carne bovina e outros produtos. Precisamos intensificar as nossas relações com essa região e a ministra Teresa Cristina, da Agricultura, tem sido exemplar nesse ponto, conseguiu inclusive resolver questões ligadas à carne Halal com a Arábia Saudita. O Brasil é o maior exportador de carne Halal do mundo e os países árabes são nossos mercados tradicionais. Então, temos que continuar a nos colocar como país supridor de produto competitivo e de qualidade para essa região, que é muito positiva, assim como são os países islâmicos da Ásia.

Noticiário – Recentemente, o Departamento de Comércio norteamericano anunciou a retirada de algumas nações da lista de países em desenvolvimento, dentre elas o Brasil. Em que medida isso pode refletir no bom desempenho do Agro nacional?
Marcos Jank
– Acho que essa lista, o Sistema Geral de Preferências (SGP), não nos beneficia muito. O Brasil quer entrar para a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE) e uma das condições era que saíssemos dessa lista. O SGP praticamente não impacta a agricultura, e sim produtos industriais, manufaturados. Então, eu não vejo grandes problemas em sair do SGP e acho altamente positivo o País entrar para a OCDE, será um divisor de águas. Primeiro porque é o “Clube dos Ricos”, que credencia o País a ter investment grade. Para entrar na OCDE, os países têm que assinar cerca de 256 instrumentos entre decisões, recomendações e declarações, que são uma espécie de passaporte de bom comportamento no sentido de economia de mercado em diversas áreas. E o Brasil já conseguiu de 80% a 90% do que é requerido. Então, não há muita dificuldade para cumprir esse estágio. Recentemente, os EUA manifestaram apoio ao Brasil e penso que, dentre os seis países que postulam o lugar, estamos mais perto de sermos selecionados para nos juntarmos aos 36 membros que já existem. Além de ser importante para atrair mais investimentos estrangeiros, os países-membros da organização também participam da elaboração das regras. Ou seja, não apenas se submetem às regras que já existem, mas ajudam a construir os padrões do futuro. Sem contar todo o ambiente de comparação de dados, de legislações. Acho que é altamente positivo e que o Brasil deve se comportar como um país que segue as regras, que atrai investimentos. E que deve buscar um ciclo de abertura comercial também. Particularmente, o agronegócio e o setor de carnes se beneficiariam muito de acordos comerciais e com a abertura comercial brasileira.

Noticiário – Em que medida a agenda de reformas brasileira poderia contribuir para esse processo?
Marcos Jank
– Acho que o Brasil está muito defasado em relação aos seus concorrentes em questões como as legislações Tributária e Sanitária, são áreas que a gente tem que reformar. Apoio totalmente a autorregulamentação do setor que está sendo proposta pela ministra da Agricultura, que é um mecanismo fundamental para dar maior agilidade ao processo exportador. E o imposto sobre consumo que está sendo sugerido na Reforma Tributária é um avanço já adotado pela maioria dos países. O agronegócio, que é tão exposto ao mundo, precisa apoiar as reformas, a abertura comercial, a entrada na OCDE, agendas que são de interesse total dos setores exportadores.

Noticiário – Como o senhor avalia a utilização de tecnologias, principalmente ligadas à nutrição animal, para o crescimento sustentável do setor?
Marcos Jank
– Fala-se muito no Brasil da revolução agrícola que aconteceu, sobretudo da soja, da migração para o Centro-Oeste, do plantio direto, da segunda safra, das novas variedades, mas pouco se fala da revolução da pecuária. A pecuária brasileira deu um salto muito grande nas últimas décadas, conseguimos reduzir a nossa área de pastagem em 30 milhões de hectares graças ao aumento da produtividade, que cresceu três vezes. Quando noticiam que as queimadas na Amazônia são para expandir a área de pastagem para os bois, isso está totalmente errado. O movimento brasileiro é ao contrário: é de redução da área de pasto, em função do desenvolvimento da agricultura e da utilização de novas tecnologias. Quem cresceu com a agricultura, aumentou muito a produtividade. Quem não reformou pasto e ficou com ele degradado, ficou para trás nesse processo e pode desaparecer com o tempo. A produtividade média brasileira salta de 1,5@ para 4,5@ por hectare ao ano, mas todos nós sabemos que é possível fazer mais de 10@ por hectare. Acho que está havendo uma “revolução silenciosa” na pecuária, que é a Integração Lavoura-Pecuária (ILP). Hoje, é possível plantar soja em terras menos produtivas com as correções de solo que estão sendo feitas. Expandimos a produção agrícola em terras mais fracas e a sua integração à pecuária faz com que o pasto melhore no ciclo seguinte. A integração da agricultura com a pecuária passa a ser muito interessante e está fazendo com que uma parcela dos produtores dê um salto, abrindo dois mundos na pecuária: um integrado e tecnificado, que vai buscar alta produtividade; e outro que vai ficando para trás, porque não se preocupa com a produtividade dos pastos e dos animais. É nesse contexto que entra a nutrição animal, em um processo de melhoria, de tecnificação dessa parcela da pecuária que está engatando para frente. Hoje, eu não vejo nenhum país fazer o que o Brasil está fazendo na área de proteínas, tanto animais como vegetais.

Já vimos o milho crescer junto com a soja, depois o frango e o suíno e, agora, observamos uma revolução profunda na pecuária de corte, com um incrível salto de produtividade e a possibilidade de melhorar solos e pastagens que há alguns anos não achávamos que fosse possível. E acho que a gente erra no Brasil ao não falar do papel das empresas privadas geradoras de tecnologias. Temos que dar valor a essas empresas, às universidades, aos institutos estaduais, e o mais importante, ao agricultor e ao pecuarista com a característica que o brasileiro tem: jovem, tomador de risco, muito dinâmico, capaz de mudar para regiões remotas do País e encarar os desafios.

Noticiário – O Insper Agro Global foi criado no ano passado, com o objetivo de se tornar referência nacional e internacional em temas vinculados ao agronegócio. Fale um pouco sobre as principais linhas de trabalho e as perspectivas de atuação para 2020.
Marcos Jank
– Ele foi criado exatamente para esse quadro. Estamos cada vez mais dependentes de exportação, do mercado internacional, vivemos em um mundo polarizado, em que a geopolítica está tomando conta. E precisamos estudar tudo isso para entender como vamos nos relacionar com a China, os Estados Unidos, os países da ASEAN, o Oriente Médio e, no futuro, a Índia e a África. O Insper Agro Global é um olhar de fora para dentro, observando quais são as grandes transformações que estão acontecendo no agronegócio mundial em oferta e em demanda e como isso impacta o Brasil. Vamos trabalhar em três frentes. Em uma delas, de estudos estratégicos, faremos trabalhos mais densos de análise. Estamos produzindo um livro em conjunto com a ESALQ/USP e a CAU (China Agricultural University), que será lançado em junho, escrito em inglês por seis autores brasileiros e seis chineses, sobre as relações Brasil-China no agronegócio. Em outra frente, vamos oferecer cursos de graduação e formação executiva sobre Direito no Agronegócio, Gestão e Governança de Empresas Familiares no Agronegócio e o papel do Brasil no Agronegócio Global. Eu vou dar cursos de graduação atendendo ao grande interesse dos alunos do Insper, que ainda não tinha essa área consolidada. Estou com a sala lotada de estudantes que não são das Ciências Agrárias. Hoje, nas grandes escolas de Economia, Administração e Direito, há muito interesse pelo agro, o que não existia antes. Na terceira frente, trabalharemos no desenho de políticas públicas, participando de várias iniciativas e discussões de fundamental importância para o setor.

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