Para a presidente do NFA, Carla de Freitas, a crescente participação feminina em toda a cadeia do agronegócio brasileiro é, assim como o uso da tecnologia nas fazendas, um caminho sem volta
Mylene Abud
Filha de um dos pioneiros do agronegócio em Rondônia, a até então comerciante Carla Rosana de Freitas viu sua vida profissional mudar radicalmente após a morte do pai, quando precisou assumir a Agropecuária Bela Vista. “Meu pai era de uma geração que não via as mulheres como sucessoras e eu não estava preparada”, conta ela, que usou as adversidades a seu favor, consolidando uma carreira de sucesso na pecuária. Também foram as dificuldades que a levaram a idealizar um grupo inédito no setor: o Núcleo Feminino do Agronegócio (NFA), da qual foi cocriadora há 11 anos.
“Queríamos formar um grupo que fosse ancorado por entidades, onde pudéssemos fazer as nossas reuniões, com o objetivo de trocar informações e buscar conhecimento sobre o agro. Um lugar que não fosse para atividades sociais, mas sim focado na discussão do negócio e da mulher como gestora. E fomos pioneiras nisso”, afirma Carla, reeleita em 2021 para um novo mandato à frente do Núcleo.
Entre as pautas do NFA, estão o dia a dia da atividade e assuntos pertinentes à gestão de propriedades rurais, como o mercado agro, o cenário macroeconômico brasileiro e mundial, as cooperativas de crédito, a política, o câmbio, as commodities, além de temas novos, tais quais os produtos biológicos, a agricultura regenerativa e a biodigestão. Tudo, é claro, à luz da sustentabilidade e do protagonismo feminino. “É uma forma de sair da caixinha”, diz Carla, que está sempre buscando o conhecimento. Após se formar em Design, “importante para sonhar, criar, imaginar coisas”, ela resolveu cursar um MBA em Gestão do Agro na FGV. E já está aplicando o aprendizado na fazenda, redimensionando confinamento, escritório, restaurante e alojamento, tudo visando ao bem-estar das pessoas e dos animais. “A reforma acompanha o crescimento da propriedade e, hoje mesmo, estou pensando no melhor lugar para o banheiro feminino, porque eu quero muito ter colaboradoras mulheres”, conta entusiasmada. “As mulheres estão procurando o seu espaço, que não é só ficar dentro do escritório, mas sim na lida do dia a dia da fazenda. E esse movimento não tem volta”, afirma Carla, na entrevista que você confere a seguir.
Noticiário Tortuga – Fale um pouco sobre a sua formação profissional e a guinada que a levou a assumir a propriedade da família, a Agropecuária Bela Vista, em 1997.
Carla de Freitas – Meu pai era produtor rural e mexia com café. Ele conheceu o Brasil inteiro e acabou comprando uma área em Mato Grosso e, depois, veio para Rondônia, quando ainda era um território. Eu me mudei para cá em 1980, seis meses após me casar. Meu marido era médico e eu montei uma rede de óticas. Com a morte do meu pai, em 1996, assumi a fazenda no ano seguinte, junto com o meu marido. Em 1999, após me divorciar, fiquei sozinha à frente da propriedade e aí foi um grande desafio. No começo, trabalhávamos só com pecuária, mas, em 2011, passamos a fazer a Integração Lavoura-Pecuária (ILP), plantando em 600 hectares. Hoje, chegamos a quase 7.000 ha! Começamos a fazer o confinamento e, neste ano, vamos aumentar a capacidade estática de 2.000 para 4.000 animais, com planejamento para 20.000.
Noticiário Tortuga – Já à frente da Agropecuária Bela Vista, o que a levou a voltar aos estudos?
Carla de Freitas – Para sair um pouco da “caixa” e ver outros assuntos que não fossem apenas os ligados à fazenda, fui fazer faculdade de Design, importante para sonhar, criar, imaginar coisas. Foi ótimo! Depois, comecei um MBA em Gestão do Agro na FGV, para colocar toda a minha liberdade de pensamento no agronegócio. E está sendo maravilhoso! Você vê que, hoje, a tecnologia e a inovação são as pontas do que vai ser o agronegócio nos próximos anos. Por exemplo, na construção do alojamento e do restaurante na fazenda, já estou colocando em prática o que aprendi em gestão de pessoas no MBA. Você passar a ter como foco o bem-estar do colaborador e o bem-estar animal. Também estou reconstruindo todos os currais da fazenda em formato oval, para que os animais não sofram. Quero trazer, junto a startups, novas tecnologias para a fazenda. Você começa a ter um outro pensamento. Hoje em dia, uma fazenda é uma empresa rural. Está havendo uma revolução nesse setor, tanto tecnológica como em relação ao meio ambiente, com o uso de energias mais limpas. Na fazenda, pretendemos colocar energia solar no curral.
Noticiário Tortuga – Como surgiu a ideia da criação do NFA? Como sua experiência pessoal contribuiu para o surgimento do Núcleo?
Carla de Freitas – Meus filhos vieram estudar em São Paulo e eu os acompanhei e aproveitei para sair um pouco do dia a dia da fazenda. Procurei, então, algumas associações para me integrar à nova vida na capital paulista. Aí fui convidada para ser vice-presidente da Novilho Precoce e me liguei à Sociedade Rural Brasileira. Comecei a frequentar a SRB e, em uma das vezes, encontrei a Cristina Bertelli e a Maria Stella Damha, e a gente conversou sobre o papel da mulher no agro, as dificuldades. Nessas conversas, surgiu a ideia de criarmos um Núcleo que fosse ancorado por entidades, onde poderíamos fazer as nossas reuniões, com o objetivo de trocar informações e buscar conhecimento sobre o agro. Um lugar que não fosse para atividades sociais, mas sim focado na discussão do negócio e da mulher como gestora. Fizemos as primeiras reuniões na Sociedade Rural e, depois, fui convidada para fazer parte do Conselho Superior do Agronegócio (Cosag) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Passamos a fazer as nossas reuniões ali, para dar credibilidade ao grupo e termos mais visibilidade. O Núcleo foi criado para a troca de experiências de gestão e de conhecimentos. Para discutirmos os nossos próprios negócios, e não os negócios dos nossos maridos. E fomos pioneiras nisso. Para fazer parte do grupo, as mulheres precisam trabalhar como gestoras em suas propriedades.
Noticiário Tortuga – A sra. é cofundadora, foi a primeira presidente do NFA e, em 2021, assumiu novamente o cargo. O que mudou nesses 11 anos de existência da associação?
Carla de Freitas – Fui a primeira presidente do NFA e fiquei um ano no cargo. Depois, quando a Carmen Perez, que é a maior autoridade em bem-estar animal do Brasil, foi eleita, ela fez o primeiro estatuto para formalizar o grupo, criar regras. O grupo cresceu e percebemos que estava na hora de atualizarmos o estatuto e, neste ano, como fui uma das idealizadoras do Núcleo, fui eleita novamente para a presidência pelo período de dois anos, para dar continuidade ao trabalho. Neste primeiro semestre, contratamos uma consultoria, trocamos muitas ideias e aperfeiçoamos os detalhes para viabilizar o novo regimento. E o segundo semestre de 2021 vai ser voltado a ouvir palestras das integrantes, falando sobre o dia a dia da atividade, além de convidados e especialistas, abordando temas atuais, como o mercado agro, o cenário macroeconômico brasileiro e mundial, as cooperativas de crédito, política, câmbio, commodities, e todos os fatores que influenciam o setor, porque fazer o planejamento de uma empresa hoje em dia está muito complicado. Também debatemos assuntos novos, como os produtos biológicos, a agricultura regenerativa e a biodigestão. É uma forma de sair da caixinha.
Noticiário Tortuga – Segundo a pesquisa “Mulheres do Agro” da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), 74,2% das entrevistadas afirmaram sentir alguma forma de preconceito, sutil ou evidente. Por outro lado, 61,1% não enfrentam problemas de liderança por serem mulheres. Como anda o protagonismo feminino no agro?Carla de Freitas – O Congresso Nacional das Mulheres do Agro começou há cinco anos, foi o maior sucesso, e, a cada ano, está ficando maior. Acho que as mulheres estão perdendo o medo. Hoje, nas faculdades de Zootecnia, Veterinária e Agronomia, mais de 50% dos alunos são mulheres. Elas estão percebendo que têm lugar na atividade. Na fazenda, estou construído restaurante e alojamento, pensando no melhor lugar para o banheiro feminino, porque eu quero muito ter colaboradoras mulheres. E elas estão procurando o seu espaço, que não é só ficar dentro do escritório, mas sim na lida do dia a dia da fazenda. E esse movimento não tem volta.
Noticiário Tortuga – Quais os principais desafios do setor e como as mulheres podem contribuir para esse enfrentamento?
Carla de Freitas – Um grande desafio é que falta mão de obra para operar a tecnologia 4.0 que está chegando às fazendas. Por isso, precisamos das mulheres que estão saindo das faculdades.
Noticiário Tortuga – Quais as principais características femininas em termos de liderança e gestão?
Carla de Freitas – A mulher é muito determinada, muito disciplinada. Ela é mais emocional, tem uma visão diferente. Se ela é gestora de uma casa, consegue gerir qualquer empresa. Antes de ser produtora rural, de gerir uma empresa do agro, eu fui comerciante, tenho ótica há 40 anos. Aí me perguntam: ‘Como você conseguiu tocar uma fazenda?’ E eu digo que apenas mudei de mercadoria. Eu vendia óculos, tinha uma fábrica de lentes, e passei a vender boi. A gestão de um negócio é como cuidar de uma casa e as mulheres têm um olhar diferenciado, mais protetor. No NFA, por exemplo, tenho a função de agregar, distribuir funções, e não de ser a Carla poderosa presidente. É preciso fazer com que as meninas entendam que todas podem trabalhar e ter a sua importância, sem sucumbir ao preconceito. Essa talvez seja a principal diferença entre a liderança feminina e a masculina.
Noticiário Tortuga – Qual a importância da nutrição animal e das tecnologias na pecuária moderna para intensificar a produção?
Carla de Freitas – Hoje, a pecuária está sendo muito pressionada pela agricultura. Nos últimos 40 anos, a agricultura deu um salto gigante no Brasil e passamos de importadores para maiores exportadores de muitos alimentos, como soja, açúcar, carne e milho. E o que levou a agricultura a ter esse salto? A tecnologia, além do trabalho forte de instituições, como a Embrapa. E o que aconteceu com a pecuária? Ainda tem muito pecuarista com mentalidade antiga. O agricultor começou a perceber que ele pode entrar na pecuária e montar o seu confinamento, porque está tendo uma brecha. Então, o pecuarista precisa implantar as novas tecnologias, inclusive na nutrição. Antes, eu só dava sal branco para o meu rebanho, mas hoje eu não posso mais fazer isso. Agora, o tempo que o boi fica na fazenda é muito rápido, precisa aproveitar ao máximo o pasto antes do confinamento. Com a Integração Lavoura-Pecuária, você tem a alta tecnologia que está sendo usada na agricultura, cujo ciclo é muito rápido. Durante o ano, eu planto soja, milho e faço a pastagem do gado. Então, o gado que vai entrar na minha fazenda tem que ser muito rápido também, pois tudo precisa ser coordenado e eficiente. Não dá mais para uma propriedade como a minha, que está altamente tecnificada, trabalhar com a pecuária sem a inovação, a tecnologia. Estou colocando bottons eletrônicos em todo o gado porque o funcionário não vai precisar mais ficar gritando o número, é só passar o bastão. Isso reduz o trabalho e agiliza o processo. A informação que precisa chegar para mim no começo do ano, quando eu faço o planejamento, tem que ser precisa, porque eu preciso conciliar a pecuária com a agricultura. Não dá mais para ficar sem tecnologia, não dá mais para deixar o boi lá para em uma extensão de terra. E nem há mais grandes extensões de terra.
Noticiário Tortuga – A sucessão nas propriedades agropecuárias também é um dos temas abordados pelo NFA. O processo sucessório já está encaminhado na Bela Vista?
Carla de Freitas – No primeiro Congresso Nacional das Mulheres do Agro, apoiado pelo NFA, fiz uma palestra em que falei sobre o meu processo de sucessão com o meu pai, que foi traumático. Meu pai era de uma geração que não via as mulheres como sucessoras e eu não fui preparada. Agora, eu resolvi iniciar o processo com o meu filho, o Guilherme, que é zootecnista e será o meu sucessor nos negócios, enquanto meus dois outros filhos, o Marco Túlio e o Leonardo, que são oftalmologistas, continuarão a atuar na área deles (os dois pretendem trazer para a região um hospital de olhos com tecnologia de ponta). E posso dizer que o processo sucessório da fazenda é a coisa mais difícil que estou enfrentando na vida. Para deixar uma propriedade, a gente precisa preparar muito esse filho e, também, se preparar. E eu percebo que ainda não estou pronta para passar o bastão. Então, estou tentando achar o meu lugar na empresa e, ao mesmo tempo, deixar espaço para o Guilherme assumir.
O segundo passo para uma sucessão bem-sucedida é fazer a governança. É o mais importante dentro de uma empresa, conseguir criar um conselho familiar, um conselho administrativo e um conselho consultivo, do qual eu farei parte. Acho que, agora, minha empresa está começando a atingir a maturidade. Então, hoje eu digo para você que a minha palestra no congresso seria totalmente diferente, falando do que eu passei na sucessão do meu pai e do caminho que eu vou ter que trilhar na sucessão para o meu filho, que é complexo. Fazer o processo sucessório é mais difícil do que fazer a Integração Lavoura-Pecuária. Mas é o processo mais importante para qualquer empresa e, principalmente, para uma empresa do agronegócio. Existem pais que não confiam nas filhas mulheres para o negócio e mulheres que não entenderam o papel importante que têm dentro do agro, e precisamos mudar essa percepção. Por isso, entre as questões que debatemos no Núcleo, a sucessão é um dos temas relevantes.
Noticiário Tortuga – Os ex-ministros da Agricultura Roberto Rodrigues, seu marido, e Alysson Paulinelli, indicado ao Prêmio Nobel, advogam que “alimento é paz”. Qual a importância do agro brasileiro nesse processo e como as lideranças femininas podem contribuir?
Carla de Freitas – Todos os produtores, homens e mulheres, pequenos, grandes e médios, têm uma função nesse processo, e nós temos uma população mundial faminta à espera de alimento. Nós, produtores rurais, temos diariamente o desafio de produzir mais, melhor e mais barato, porque, senão, não vamos conseguir alimentar o mundo. O agricultor familiar é importantíssimo, e não vai perder esse papel. E existe a agricultura tradicional, que precisa do uso da tecnologia não porque o produtor quer ficar mais rico, e sim para poder ter um alimento digno e barato. Existe fome no mundo, existe fome no Brasil. E nós queremos produzir, produzir e produzir. Porque, quanto mais a gente produz, fica mais barato para todos. Com a tecnologia, estamos ano a ano conseguindo colocar na mesa dessas pessoas uma comida, que tem que ser barata e sustentável.
E eu também estou fazendo isso na minha fazenda, onde tudo está sendo redimensionado: confinamento, escritório, restaurante e alojamento, visando ao bem-estar das pessoas e dos animais. Essa preocupação com as instalações, com o alojamento, em colocar inox no restaurante, ar-condicionado, não é por uma exigência do Ministério da Agricultura, mas por uma conscientização de que isso faz parte da sustentabilidade econômica, social e ambiental.