Após fechar 2019 em alta, setor lácteo trabalha para garantir o abastecimento do mercado brasileiro, de olho nas demandas dos consumidores e na eficiência produtiva
Mylene Abud
Para o engenheiro-agrônomo e mestre em Economia, Marcelo Costa Martins, o setor lácteo brasileiro está vivenciando um momento de aprendizado com a pandemia de Covid-19, no qual é preciso priorizar e planejar o processo de produção diariamente, de acordo com a demanda do consumidor. “Daqui para frente, precisaremos decifrar o comportamento dos consumidores, pois ainda não temos clara essa demanda. Em um primeiro momento, a população foi ao supermercado e comprou até em excesso, desequilibrando o setor. Depois, ninguém comprava nada, e em um terceiro momento, após o início do auxílio emergencial do Governo Federal, voltou a adquirir produtos lácteos”, exemplifica Martins. E ele fala com conhecimento de causa. Há cinco anos, atua como diretor executivo da Associação Brasileira de Laticínios – Viva Lácteos, entidade que representa a indústria de lácteos e reúne 37 dos principais fabricantes e associações do setor no Brasil. Juntos, seus associados são responsáveis por 70% da produção de leite e derivados no País, incluindo iogurtes, queijos e requeijões.
Em entrevista ao Noticiário, Marcelo Martins fala sobre o início das exportações para a China e a abertura de novos mercados. “Já exportamos para a Rússia e, tão importante quanto abrir novos mercados, é consolidar aqueles para os quais já exportamos. Como o Chile, que, em virtude da pandemia, abriu processo para a habilitação de novas plantas de forma documental, e não presencial”, afirma.
Mesmo em um momento turbulento, a associação – assim como toda a cadeia do leite – continua trabalhando intensamente para garantir o abastecimento da população e tornar o setor cada vez mais competitivo. “No geral, a cadeia do leite brasileira precisa melhorar sua eficiência produtiva, avançando em qualidade, sanidade, nutrição, planejamento estratégico, controles zootécnicos, boa escrituração contábil, gestão como um todo. Esses são atributos fundamentais para sermos autossuficientes e competitivos no mercado externo. O período pós-pandemia não vai permitir a ineficiência”, sentencia.
Noticiário – O setor lácteo brasileiro fechou 2019 com crescimento estimado entre 2% e 2,5%. O preço médio do litro de leite pago ao produtor foi R$ 1,36, o que representa US$ 0,33 considerando o câmbio de R$ 4,06 por dólar. Como estão as perspectivas do setor para 2020, um ano atípico em função da pandemia de Covid-19?
Marcelo Costa Martins – Tínhamos uma expectativa de crescimento interessante e 2020 seria o melhor ano para os produtores depois de 2014, com a habilitação de 24 plantas para exportar para a China e a consolidação de mercados, entre outros fatores. Com a pandemia, estamos vivendo um momento de aprendizado, trabalhando em três frentes. Em uma delas, assegurando a essencialidade do leite e da cadeia de suprimentos lácteos. O Ministério da Agricultura teve a sensibilidade de adequar regras relativas a algumas questões, como o uso de insumos e embalagens, para manter a cadeia de suprimentos e garantir o abastecimento à população. E fizemos todo um trabalho nesse sentido. Por outro lado, também precisávamos garantir a saúde de todos os colaboradores do setor, com base nos protocolos contra a Covid-19, mitigando problemas em toda a cadeia, incluindo as indústrias. E, daqui para frente, também precisaremos decifrar o comportamento dos consumidores, pois ainda não temos clara essa demanda. Em um primeiro momento, a população foi ao supermercado e comprou até em excesso, desequilibrando o setor. Depois, ninguém comprava nada. Fora a cadeia de food service (restaurantes, padarias, lanchonetes etc.) que, em um primeiro momento, reportava queda de 90%. O crescimento do setor tem relação direta com o crescimento do PIB per capita. Nesse sentido, o auxílio emergencial do Governo Federal, de R$ 600,00, tem contribuído para a manutenção da demanda. O entendimento da população de que não vai faltar alimento também é muito importante. Nesse momento, é essencial que a oferta de leite esteja ajustada à demanda para não haver estoques. E temos que agradecer por sermos um setor que está produzindo, garantindo o abastecimento da população e gerando renda para os produtores.
Noticiário – Segundo pesquisa da Embrapa Gado de Leite, a pandemia trouxe mudanças nos hábitos de consumo e os produtos lácteos ganharam mais espaço nos lares brasileiros. Como isso beneficia o setor e a demanda interna?
Marcelo Costa Martins – Em abril, tivemos uma queda significativa no consumo, mas, em maio essa relação se equilibrou. Nesse momento, temos que fazer dia a dia uma leitura dos hábitos de consumo da população. Por exemplo, o leite em pó e o UHT manteve a demanda. Já o queijo retomou o consumo, principalmente nas casas. No entanto, os produtos destinados às redes de food service ainda estão em recuperação e se faz necessária a readaptação desse portfólio. Um empresário do setor me disse que o processo de tomada de decisão está sendo feito de 12 em 12 horas. Isso mostra que é preciso priorizar e planejar o processo de produção diariamente, de acordo com a demanda do consumidor.
Noticiário – Ano passado, a ministra Tereza Cristina esteve no Oriente Médio e na Ásia para negociar a abertura de novos mercados, como a China e o Egito, para os produtos lácteos brasileiros. Em julho, completaremos um ano de abertura de mercado para a China. Qual o balanço para esse período?
Marcelo Costa Martins – Os mercados da Arábia Saudita e do Egito foram abertos. Com a Arábia Saudita, estamos discutindo os protocolos, pois existem requisitos sanitários para serem cumpridos. Com o Egito, está tudo caminhando bem. Com relação à China, em um primeiro momento, houve dificuldades, como o registro de produtos e de rótulos, e estávamos avançando para iniciar as exportações de fato. Esse processo retardou em virtude do início da pandemia. A Ásia e o Oriente Médio são importantes mercados, mas aprendemos que há muitas diferenças culturais. Já exportamos para a Rússia e, tão importante quanto abrir novos mercados, é consolidar aqueles para os quais já exportamos. Como o Chile, que, em virtude da pandemia, abriu processo para a habilitação de novas plantas de forma documental, e não presencial. A América Latina é um mercado muito importante para o setor lácteo, tanto pela proximidade como pelo custo logístico menor e a cultura semelhante.
Noticiário – Como estamos caminhando com as exportações para outros mercados?
Marcelo Costa Martins – Estamos fazendo um trabalho de prospecção bastante promissor. No ano passado, exportamos para mais de 50 países. Ainda não somos autossuficientes na produção, pois há uma diferença de cerca de 4% entre o que se consome e o que se produz no Brasil. Essa diferença já foi maior, de 20%, e vem caindo ano a ano. Em breve, seremos autossuficientes e, para continuar crescendo, é preciso aumentar a demanda. Esse aumento pode vir pelo crescimento do consumo interno, com a melhora da renda dos consumidores brasileiros, ou via exportações. O foco ainda é o mercado interno. Existem muitas indústrias que não iniciaram processo para começar a exportar porque estão mais voltadas a
este mercado, e não por não terem competência. Para continuar crescendo 4% ao ano, como ocorreu durante vinte anos, até 2014, o setor vai ter que gerar demanda. E equilibrar os preços entre as vendas internas e externas como uma meta de longo prazo, importante para conseguirmos ampliar a nossa participação no mercado externo com sustentabilidade.
Noticiário – Como a cadeia e os produtores precisam se organizar para aumentarmos as exportações? Quais as oportunidades?
Marcelo Costa Martins – Nossa cadeia precisa melhorar sua eficiência produtiva. Há um grupo de empresas se profissionalizando, com o objetivo de se tornarem grandes exportadores no futuro. É verdade que há dificuldades para se exportar commodities. Existem diferenças de preços no mercado interno e externo que comprometem a atuação. No leite em pó, por exemplo, chega a 20%. Mas esse equilíbrio de preços é uma meta a ser buscada em longo prazo. Há negociações avançadas para a exportação de derivados, como queijos e leite condensado, que têm maior valor agregado. Também está sendo feito um grande trabalho de divulgação de produtos genuinamente brasileiros, como o queijo coalho, em termos de uma definição de marca internacional para exportação. E de estratégia para novos potenciais mercados, no que se refere a exigências sanitárias, tarifárias etc. Hoje, temos oito mercados-alvo, mas sempre precisamos ter informações claras quanto a estas exigências.
Noticiário – Quais os principais desafios e gargalos do setor?
Marcelo Costa Martins – O Brasil é um país continental. Existem regiões que são verdadeiras ilhas de excelência, e não perdemos para nenhum país do mundo; por outro lado, há outras muito precárias. Ou seja, existem barreiras que precisam ser ultrapassadas. O último censo agropecuário mostrou que mais de 90% dos produtores de leite produzem abaixo de 500 litros por dia. A atividade leiteira tem muitos pequenos produtores.
No geral, a cadeia do leite brasileira precisa melhorar sua eficiência produtiva, avançando em qualidade, sanidade, nutrição, planejamento estratégico, controles zootécnicos, boa escrituração contábil, gestão como um todo. Esses são atributos fundamentais para sermos autossuficientes e competitivos no mercado externo. O período pós-pandemia não vai permitir a ineficiência.
Noticiário – Comente sobre a atuação da Viva Lácteos.
Marcelo Costa Martins – Nosso trabalho é voltado a questões institucionais e governamentais, que incluem desde a participação em processos de discussão sobre a regulamentação técnica, a identidade e a qualidade dos produtos, a inovação e a aprovação de marcos regulatórios para a produção de lácteos, até a modernização das categorias e os trabalhos voltados para a exportação, como convênios com o Ministério da Agricultura para processos de acesso a novos mercados. abertura de novas plantas etc. Em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), participamos de feiras no exterior, apresentando produtos genuinamente brasileiros, discutindo estratégias de marketing para o lançamento, rótulos, tarifas. A Viva Lácteos é nova, surgiu há cinco anos, e estou à frente da associação desde o início, participei da criação do estatuto. Temos um formato diferente: não temos presidente, e sim um conselho de administração formado por 15 associados, e toda a nossa equipe é de técnicos. O processo para qualquer tomada de decisão envolve o debate com os associados e os conselhos. Há oito comitês, e cada um trata de temas específicos da categoria, como qualidade, meio ambiente, regulatórios etc. Nossa gestão é totalmente compartilhada.
Noticiário – Como garantir a produção de leite com quantidade
e qualidade?
Marcelo Costa Martins – Nos últimos anos, a qualidade melhorou significativamente no Brasil. Como falamos antes, vivemos em um país continental, com regiões que têm excelência na produção de leite em qualidade e volume, e outras regiões precárias, com estradas ruins, pequenas fazendas produtoras separadas por grandes distâncias, problemas de eletrificação, logística etc. São muitos os desafios. Hoje, há um entendimento muito maior da importância da qualidade do leite para a sanidade do rebanho, o tempo de prateleira dos produtos. Da década de 1990 para cá, houve melhoras significativas. Mas a excelência em qualidade precisa ser trabalhada continuamente, ao longo dos anos.
Noticiário – Nesse sentido, qual a importância da nutrição animal e da tecnologia?
Marcelo Costa Martins – A tecnologia e a boa nutrição são os alicerces do processo de produção. Há um jargão que diz que ‘o leite vem pela boca dos animais’. Rebanho bem alimentado, dieta equilibrada, controle de qualidade do leite e sanidade são considerados o marco zero para a competitividade do ponto de vista da rentabilidade e da sustentabilidade, a chave para que o setor possa alavancar. E o ponto básico desse processo está na boa nutrição e no manejo do rebanho. Para isso, o uso de tecnologias adequadas a cada sistema de produção é extremamente importante para que setor consiga avançar e que os produtores possam se sustentar no longo prazo.
Noticiário – Em 2011, a DSM, detentora da marca Tortuga, criou o prêmio Qualidade do Leite Começa Aqui!, para homenagear produtores que atingem altos níveis de qualidade com o uso das tecnologias da empresa. Qual a importância desse tipo de iniciativa para o setor?
Marcelo Costa Martins – Todas as ações desenvolvidas para fomentar a melhoria da qualidade são extremamente importantes. A excelência na qualidade do leite é um processo contínuo e ações que incentivam e fomentam a melhoria, reforçando a sua essencialidade, são bastante significativas. E, como setor privado, é nosso papel contribuir para que isso de fato ocorra. É muito bom acompanhar ações, como essas desenvolvidas pela DSM em prol da cadeia leiteira.
Noticiário – Nessa fase de pandemia, qual a importância do consumo de lácteos para a população? Os benefícios são vistos de forma clara?
Marcelo Costa Martins – Não obstante as campanhas que tentam difamar o setor, a população enxerga a importância dos lácteos para a sua alimentação. Na escolha de alimentos, ficou bastante claro que muitos consumidores recorrem aos produtos lácteos. Durante os primeiros dias da pandemia, os supermercados precisaram restringir a quantidade de leite
para não faltar. É importante destacar o papel dos produtos lácteos, como fonte de proteínas e vitaminas de alto valor nutricional e acessível para toda a população. O cálcio e as demais vitaminas presentes nos lácteos ajudam a fortalecer a imunidade, tão necessária nesse momento. No entanto, a questão do consumo ainda está muito relacionada à renda. O
brasileiro é bom consumidor de leite fluido e, quando melhora a sua renda, também de derivados.
Noticiário – Para finalizar, gostaria de deixar um recado para os produtores de leite do País?
Marcelo Costa Martins – Estamos passando por momentos de dificuldades pelos quais ninguém imaginava que iríamos passar. Mas é justamente nesses momentos que nós crescemos. A pandemia vai passar e acredito muito que a nossa cadeia produtiva, com todas as dificuldades que estamos tendo e vamos ter, vai sair fortalecida. Vejo que já estão ocorrendo mudanças positivas. Não canso de comentar que temos que dar graças a Deus por estarmos em um setor que, com nossa produção, abastece a casa dos brasileiros, levando alimentos de qualidade e que ajudam na imunidade. E que não paramos de trabalhar. Estamos indo de vento em popa, desenvolvendo o nosso trabalho para que a sociedade como um todo saia dessa crise o quanto antes.