Considerado o ‘Pai da Agricultura Moderna Brasileira’, ex-ministro Alysson Paolinelli é indicado para o Prêmio Nobel da Paz
Mylene Abud
OBrasil é considerado o celeiro do mundo, um dos principais responsáveis por alimentar uma população estimada em quase 9,7 bilhões de pessoas em 2050. Mas nem sempre foi assim.
A história de sucesso do agro Brasil começou na década de 70, quando um dos mais jovens ministros da Agricultura assumiu a responsabilidade por essa transformação. “Antes de 1974, tínhamos a agricultura da enxada, do carro de boi. Depois, passamos a ter a agricultura da ciência e da tecnologia”, conta Alysson Paolinelli, que ficou à frente da Pasta até 1979.
Mineiro de Bambuí, engenheiro-agrônomo, professor universitário, três vezes secretário de Agricultura em sua terra natal, além de ter atuado como ministro e deputado federal, ele é considerado o ‘pai da agricultura moderna brasileira’. E com justificada razão. Visualizou e liderou o movimento que, na década de 70, implantou a agricultura tropical no Cerrado brasileiro, que transformou o país importador em uma das maiores potências agrícolas e exportadoras de alimentos do mundo.
Esse visionário da revolução agrícola tropical, vem trabalhando, há mais de 40 anos, para que o Brasil consolide a sua posição de maior produtor e exportador de alimentos seguros e sustentáveis, através da ciência e da tecnologia. Em 2006, recebeu o “World Food Prize”, um dos mais importantes prêmios da agricultura mundial, por sua contribuição para o desenvolvimento e o aumento da quantidade e da qualidade de alimentos no planeta.
Por esse legado, Paolinelli está sendo indicado para o Prêmio Nobel da Paz 2021, com o apoio de mais de 100 cartas de representantes de instituições de 28 países. Seu lema: Alimento é paz!
“Todas as guerras mundiais, se você examinar bem as suas origens, foram movidas por disputas por áreas ou para ter alimentos sadios e suficientes. Por isso, tenho sempre na minha mente que alimento é paz”, explica Alysson Paolinelli, atual presidente da Abramilho, que continua trabalhando para a excelência e o reconhecimento da importância do Agro Brasil para o mundo.
Se depender da gente, o Prêmio Nobel já é dele! Ou melhor, é nosso!
Noticiário Tortuga – No livro 1984, George Orwell dizia que ‘guerra é paz’. Na sua opinião, alimento é paz. Por quê?
Alysson Paolinelli – O homem foi criado e se desenvolveu para ser bem alimentado. A atividade mais importante que ele tem é a capacidade de sustentar seu próprio organismo. E, para isso, ele precisa se alimentar bem. Quando não há uma alimentação segura, ele começa a ter problemas de saúde. Aparecem, também, os conflitos, que às vezes se generalizam e acabam terminando em guerra. A gente vê muito isso na África e em outras regiões do Globo. E todas as guerras mundiais, se você examinar bem as suas origens, foram movidas por disputas por áreas ou para ter alimentos sadios e suficientes. Por isso, tenho sempre na minha mente que alimento é paz. Quem está bem alimentado, procura exercer a sua atividade de maneira correta. Quem está com fome, está na miséria, não há cabeça que pense bem.
Noticiário Tortuga – Como se sentiu ao ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz?
Alysson Paolinelli – Para mim, é uma honra muito grande. Sei que fui sobretudo indicado por companheiros que acompanham a nossa luta há mais de quarenta anos, que ainda trabalham conosco e sabem de todas as dificuldades por que passamos. E agora que o Brasil está atingindo uma posição ímpar no cenário mundial, eles acharam que eu deveria representar esse grupo com a minha indicação ao Nobel. Mas esse prêmio é também para o nosso cientista, os nossos extensionistas, os técnicos e profissionais da área, o governo que, através das suas políticas públicas, nos deu condições para viabilizarmos as tecnologias para os trópicos. E para o produtor, que foi fundamental, acreditou na evolução científica e adquiriu as inovações que nós fomos oferecendo sucessivamente. E viu que aquela era a forma de transformar a sua atividade de subsistência em uma atividade técnica e competente. Eles se organizaram, criaram processos de gestão e conseguiram, assim, chegar ao mercado. Primeiro, abastecendo o Brasil e, agora, o mundo.
Noticiário Tortuga – E isso tudo aconteceu em cerca de 40 anos, tempo em que o Brasil deixou de ser importador para ser um dos maiores exportadores de alimentos, graças à Revolução Agrícola, do qual o sr. foi um dos idealizadores e líderes. Como surgiu essa ideia?
Alysson Paolinelli – Não era uma ideia, e sim uma necessidade urgente. Quem viveu na década de 60, sabe que a situação não era muito favorável. O único produto que nós tínhamos ainda em exportação era o café, que só é desenvolvido em área tropical. Nós nos transformamos no maior exportador de café do mundo, e o produto representava 80% da nossa balança comercial. Quando chegou a década de 60, o mundo começou a receber indicações de que haveria dificuldade de suprimentos. As regiões temperadas do Globo, que haviam sustentado a população até então, davam sinais de que estavam exaurindo seus recursos, sem terras aráveis novas, e não tinham como ampliar a produção para atender à explosão demográfica que estava acontecendo. Em 1968, os Estados Unidos, que era o grande abastecedor do mundo, tiveram que fazer o seu primeiro embargo de exportação de alimentos não político. E a justificativa foi triste: eles estavam fazendo isso porque só teriam alimento para mais seis meses.
O mundo entrou em pânico, o alimento dobrou de preço em menos de uma semana. E países importadores, como o Brasil, já começaram a ter problemas. Nosso saldo comercial foi forçado e gastamos grande parte da compra do café com essa explosão de preços. E a dependência era muito grande, importávamos 1/3 dos alimentos que consumíamos.
Em 1973, com a atuação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e a crise do petróleo, o barril passou de 2,5 a 3 USD para 11 USD em uma semana. E começou a subir sucessivamente. Para você ter uma ideia, naquela época, o Brasil consumia 80% de petróleo via importação. Então, se fosse somar a conta alimento mais a conta petróleo, não fechava. O Brasil passaria a ter uma dívida anual muito perigosa. Havia a projeção de que, se continuássemos dessa forma, não teríamos mais que cinco anos de crédito no mercado internacional.
Nós entramos no Ministério da Agricultura em 1974 e era ultra necessário encontrar uma saída estratégica. Para descobrir petróleo, com a tecnologia daquela época, levaria mais de 30 anos. Isso só foi acontecer com o pré-sal. Nossa indústria era obsoleta e exigia, inclusive, proteção através de tarifas e subsídios. A única saída era pelo setor agrícola. Mas não existia no mundo nenhuma tecnologia específica para a área tropical. Então, teríamos que criá-la. E formamos um grupo de cientistas jovens que seriam capazes de criar essa tecnologia que o mundo não conhecia.
Noticiário Tortuga – Quais os principais obstáculos enfrentados para a implantação do projeto?
Alysson Paolinelli – Tivemos algumas dificuldades, sim. A primeira delas foi logo em 1974. Havíamos aberto um concurso para 1.000 profissionais na Embrapa, e só apareceram 53 com pós-graduação. Foi um desastre. Mas aí resolvemos acreditar nessa juventude. Conseguimos um empréstimo de 200 milhões de dólares e fizemos um grande esforço em treinamento, na preparação de jovens cientistas. Enviamos cerca de 1.530 profissionais para os melhores centros de pesquisas do mundo com a missão de conhecer a ciência em seu último grau e ver o que poderíamos aproveitar dela. Mas a tecnologia, a inovação tinha que ser feita no bioma tropical brasileiro. Isso deu muito certo e a Embrapa foi, sem dúvida, a grande promotora dessa revolução como coordenadora do projeto, unindo entidades do setor agrícola, instituições estaduais de pesquisa e a iniciativa privada. Isso deu velocidade à geração de conhecimentos, para que nossos agricultores fizessem a
sua primeira ‘travessura’, que foi conquistar o Cerrado.
Noticiário Tortuga – Como aconteceu essa ‘travessura’ da conquista do Cerrado?
Alysson Paolinelli – O Cerrado brasileiro tinha dois milhões de quilômetros quadrados de terra degradada pela própria natureza. Era uma das terras mais velhas do Globo, já tinha sido lixiviada, o próprio índio havia aprendido a botar fogo todo ano para ampliar a área das suas caças. E quando veio o colonizador, ele aprendeu com o índio que, além da caça, podia colocar um boi. E colocava um animal em 10 ha. Era um extrativismo dos mais espantosos que nós já vimos. E foi assim que o homem começou a conquistar o Cerrado no Brasil. Aí veio a ciência e demonstrou que aquela terra estava exaurida, que precisava ter novamente os elementos de que as plantas necessitavam. As terras foram neutralizadas com calcário, melhoradas com magnésio, colocou-se nitrogênio, potássio e fosforo, além de outros elementos – hoje, nós já manejamos 143 microelementos para melhorar as condições reais e restabelecer a fertilidade química do solo.
A partir do segundo ano, o agricultor recebeu a tecnologia para melhorar a parte física, com aração profunda, subsolagem. Cada caso era estudado pela ciência e resolvido com o produtor. E assim nós começamos a conquistar o Cerrado, com essa recomposição biológica. Depois de cinco ou seis anos, estava restituída a fertilidade do Cerrado, que passou a ser a terra mais produtiva e competitiva que o mundo tinha e se tornou o grande sustentáculo da nossa produção. Foi como um sonho e ocorreu em grande velocidade. E para fazer isso, tivemos toda a autonomia para montar a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e acionar os parceiros, as universidades, as instituições de ensino e a iniciativa privada, que passaram a trabalhar com a excelência que tinham. Outro grande lado positivo foi a criação da Embrater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural), lança fundamental para transferir tecnologia e desenvolvimento ao produtor. Era o que precisávamos para deixar de ser importadores de alimentos. Antes de 1974, tínhamos a agricultura da enxada, do carro de boi. Depois, passamos a ter a agricultura da ciência e da tecnologia.
Noticiário Tortuga – Após um ano desafiador em função da pandemia de Covid-19, como o sr. vê o momento da agricultura brasileira? E da pecuária?
Alysson Paolinelli – O Brasil deu demonstrações de sua competência, porque nós crescemos mais do que se esperava em meio à pandemia, na agricultura e, em especial, na pecuária. Isso foi muito importante, em primeiro lugar, por demonstrar a segurança da produção brasileira. O mundo está vendo isso. Enquanto os países ricos estão caindo de 8% a 10%, o Brasil vai cair 4% e tem projeção de crescer muito mais do que estava previsto. E isso dá segurança àqueles que dependem do alimento brasileiro. Outro ponto que julgo fundamental é que o mundo está tomando conhecimento de que o crescimento brasileiro não é feito às custas dos recursos naturais. Lá no hemisfério temperado, eles têm as terras mais ricas e milhões de anos mais novas que as nossas, muito férteis, com pH positivo, o que significa que podem ser mais bem plantadas e manejadas, que aceitam melhor a reposição dos elementos que fertilizam o solo. Mas eles chegaram à conclusão de que só é possível produzir uma safra. Eles têm 12 dias de janela para plantio em um ano. Se não plantarem nesse período, acontece o que vemos agora: muitos americanos e europeus perdendo sua safra por causa da neve. Essa onda de frio que bateu por lá vai impedir vários produtores de colher o final da safra. Isso é sinal de que eles não plantaram dentro desses 12 dias. Quando plantam antes, tem o risco do veranico; quando plantam depois, tem a neve. Então, sabem que estão apertados dentro de uma oportunidade de plantio, que dura de quatro a cinco meses ao ano. E aqui, nós plantamos os 12 meses do ano! Não há nenhuma limitação em plantar e colher. Inclusive, eles já viram que o País está olhando para as melhores janelas de venda de produtos e planta para colher naquela época. E isso nos dá muita vantagem. Países de clima tropical, como o Brasil, podem colher até três safras por ano, como acontece no Planalto Central, onde os produtores trabalham com irrigação. Abaixo do paralelo 22, são duas safras para atender às demandas. A agricultura tropical é imbatível e quem diz isso são órgãos internacionais, como a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Então, pode ter certeza de que o mundo reconheceu de forma inexorável que o Brasil tem tecnologias muito mais avançadas do que a deles, porque nós estamos evoluindo na microbiologia, utilizamos a ciência para melhorar o trabalho dos solos. O Brasil vai ser o primeiro país a reduzir o uso dos produtos químicos através da microbiologia, até porque os consumidores estão cada vez mais exigentes e não gostam de produtos que sejam tratados com esses compostos, alegam que são perigosos. Já estamos fazendo isso através de combates biológicos e essa evolução assusta os concorrentes. Nós precisamos ter cabeça e montar outra vez uma estratégia, na área de ciência e tecnologia e de políticas públicas, para que o Brasil faça uma agricultura mais natural, que o mundo hoje deseja. E essa revolução vai ser fascinante!
Noticiário Tortuga – Hoje, há vários movimentos em prol da melhoria da comunicação do agro Brasil com a sociedade. Na sua opinião, o setor tem falhado nisso?
Alysson Paolinelli – Melhorou muito, mas ainda estamos longe do ideal. Vamos chegar lá porque o Brasil vai se fortalecer a cada dia como o maior player mundial de alimentos. E isso vai dar ao brasileiro o orgulho de que ele alimenta o mundo inteiro. Para 2050, quando se espera que haja uma população mundial de mais de nove bilhões, serão necessários 61% a mais de alimentos. Para suprir essa demanda, é preciso que o Brasil se comprometa a produzir 2/3 disso. Ou seja, precisamos aumentar nossa produção em 41% para que não haja falta de alimentos. Já temos a tecnologia para isso e podemos fazer com o ‘pé nas costas’. Mas é preciso acabar com os desentendimentos que atrapalham, como, por exemplo, na área biológica, em que alguns acreditam que só a agricultura orgânica é a ideal. A FAO fez um estudo e chegou à conclusão de que a agricultura orgânica não abastece nem 0,6% da demanda atual do mundo por alimentos. O que vamos precisar é de alimentos naturais, que é diferente. Que não são produzidos só pela máquina, mas que passam pela mão do homem, em que cada peça tem o olho, a mão e, sobretudo, a dedicação, o carinho e o amor do produtor. Estão tentando fazer isso lá fora, em estufas. Há uns dois anos, nos Estados Unidos, fui convidado a conhecer a maior estufa que eles tinham feito totalmente automatizada. Era mais de 1,5 hectare, e um homem só conduzindo aquilo tudo. Luz, calor, vento. O que precisar, tem de forma automática. Gostei muito, mas, no final, fiz uma perguntinha só: ‘Quanto custou?’ Não conseguiram me dar o preço. Isso sem falar que eles podem estar usando uma energia muito duvidosa, de carvão ou de fóssil. Então, preferi não entrar nesse tipo de discussão com eles e fiquei como um brasileirinho, que sabe que tem a chave dessa questão na mão e que vai ganhar, sem dúvida, essa competição. Só nós podemos fazer isso de forma natural. O Brasil é uma estufa a céu aberto todos os dias do ano. Basta que saibamos aproveitar isso através da ciência.
Noticiário Tortuga – Como avalia a utilização de tecnologias na agricultura e na pecuária moderna para o crescimento sustentável do setor?
Alysson Paolinelli – Na pecuária, temos sobejas condições para dominar. Já temos uma tecnologia, a integração lavourapecuária, que só aqui pode existir. Não há fora da área tropical. Nem o americano, o inglês e o chinês vão fazer. Nós somos capazes de produzir no mesmo ano um produto, seja feijão, fibra, óleo. E, depois, plantar um pasto e manter dez vezes o número de animais que mantínhamos antes. Só com o pasto cultivado, aproveitando os resíduos da cultura, e será possível colocar de cinco até dez animais por hectare, dependendo das condições. Então, pode ter certeza de que a pecuária de corte vai crescer demais. Em suínos, será o maior produtor em pouco tempo. Já somos os maiores exportadores de carne de frango e seremos o maior produtor também. Em tudo isso, peixe, pequenos animais, o Brasil vão dominar. É questão de tempo e tecnologia, se continuarmos a acreditar na tecnologia e fizermos projetos públicos para o seu uso,
aliados à competência do produtor.
Noticiário Tortuga – Por fim, quais são as palavras-chaves para o agro Brasil assumir seu protagonismo na produção de alimentos e na garantia da paz mundial?
Alysson Paolinelli – Para mim, são três as palavras-chaves: ciência, persistência e competência.